outubro 21, 2016

Que Dia É Hoje?

Sabes que dia é hoje?

É aquele em que se diz
Que os olhos são o espelho da alma...
A ser verdade, os meus estão partidos.

É o dia em que penso na conta que já perdi
Às quantas vezes te delineei com eles inteiros
E nunca a anterior foi tão bela quanto a próxima.

É aquele dia em que o silêncio se torna ouro
E eu carrego em dígitos na esperança de ouvir o teu
Enquanto arranjo palavras que o possam roubar.
No fundo, é dia de ser dia igual aos outros...

Sabes que dia é hoje?
É mais um dia em que te sinto a falta.

agosto 01, 2016

Corda

Como uma corda
Que se estira, que se estende
Onde se pregam os retalhos do ontem
Leves e completos e belos
Linho que se fiou entre os nossos olhos
Entre o nosso silêncio
Daquele que não se diz por dizer.

E suporta a corda igualmente
Os trapos rasgados
De marcas tão entranhadas
Quanto são prova do esforço
Rompido entre o desânimo e a cólera.

Como uma corda onde se fixa a roupa
Que se nos cola ao corpo da alma
No momento do agora
Ora brilhante, ora fosca.

Amanhã se arranjarão mais molas
Para uma corda que se estira, que se estende
E não parte.

março 15, 2016

As Histórias de Amor

As histórias que se dizem de amor não são perfeitas. Aliás, as verdadeiras são aquelas que não são perfeitas. Não se ilustram com capas de revistas nem com as dos livros do Nicholas Sparks. As histórias às quais se pode chamar de amor têm ramelas e maquilhagem esborratada às 3 da manhã. Vestem-se com aquele pijama larguíssimo de tão velho, mas tão confortável e não deixam de ser grandes histórias. Nelas há o “vai-te foder, mas antes disso beija-me” e não há melhor abrigo contra o frio, a chuva e o medo do que a curva que vai desde o pescoço até ao ombro do(a) co-autor(a). Nelas também se chora, escorregando as costas contra a parede até ao chão frio da cozinha… Fílmico? Não, histórico! E há nódoas de ketchup ou de mostarda ou de maionese nos cantos da boca, prontamente eliminadas com um guardanapo em forma de lábios… Fazem-se com palavras desligadas e sons despertos, com água a correr e terra entre os dedos. Cheiram a álcool, a tabaco, a colónia, a roupa lavada, a sexo. As histórias de amor escrevem-se com céu e inferno… Tatuam-se com sangue por dentro. E nunca há tinta que chegue para as registar como deve ser nas folhas do tempo.

fevereiro 24, 2016

Três

Quero amar-te sempre e tanto e ser-te amada mais ainda


Fazer da arte toda a vida já que vives nela e ela te vive em cada traço


Olhar-me ao teu espelho e dizer: "quanto prazer em conhecer-me!"

fevereiro 13, 2016

Flashback

Enquanto oiço música no jardim, enquanto queimo tempo.

Aquela que fala em jogos de vídeo, em que o vídeo é um conjunto de retalhos, de flashbacks.

E também faço os flashbacks na minha cabeça.

A ponte, o que se vê através dela, o jardim de sol, pavões e onde se joga vólei. Teatro e dança a nu, o levantar da mesa para um beijo, a objectiva a captar fulgores. As conversas de circo, as tertúlias e as ousadias. O olhar para mim, o calorzinho bom, a nicotina pensativa, o contorno do ombro. Eu sei lá que mais.

Por acaso até sei e não sou a única.

janeiro 10, 2016

Chiclas

A pastilha elástica, consumível de culto em tempos imortalizado num hit musical português, existe desde que os Homens se conhecem e se tratam por tu.

Vestida com invólucros brilhantes e apelativos, de fácil abertura, vende-se em diferentes tamanhos, cores e sabores. Algumas se escondem atrás de chupa-chupas e gelados, como que a quererem tornar-se difíceis de alcançar, e ver a deliciosa missão de se chegar a elas ser cumprida dá-lhes um certo gozo.

Tornou-se moda essa coisa das pastilhas elásticas sem açúcar - há que zelar pela saúde, principalmente a dentária -, no entanto em sua substituição prevalecem os artificiais edulcorantes, que ainda conseguem ser piores. Mesmo assim, isso não tira o interesse que se nutre por elas, essas gominhas que adoram passear em cavidades bucais, que as preenchem e se tornam tão flexíveis que dá para soprar e fazer balões daqueles que rebentam na cara, à laia de bomba inofensiva (ou até dentro da boca, conforme a apetência). Basta saber usar a língua.

Enquanto se vai mascando não se vai pensando em nada, reduz-se o stress do dia-a-dia e refresca-se o hálito. Vai-se mascando por vício, vai-se mascando para evitar privações de outros vícios. Vai-se mascando até elas endurecerem e se tornarem desagradáveis ao paladar, que entretanto se alegrava de tão adocicado… Chega portanto a hora de as cuspir e deitar fora, de as trocar por novas, remetendo-as numa questão de minutos à sua efemeridade, quer seja num falsamente digno caixote do lixo, quer seja na valeta de uma rua.

Ninguém disse que as pastilhas elásticas não tinham o direito a existir. Mas há que convir que tendo o estômago cheio, mais cedo ou mais tarde elas acabam por criar uma certa sensação de fome. Por outro lado, se estiver vazio, não são elas que a vão matar. E se há coisa que a fome não gosta, é de ser enganada.

janeiro 09, 2016

Do Lado De Dentro

Às vezes de noite, quando me torno uma mera passageira de um carro, autocarro ou comboio, gosto de olhar para a janela e, sem perturbar ninguém, entrar nas janelas que vou encontrando, cujas luzes acesas pontilham casas e prédios e estabelecimentos, apenas imaginando quem ali poderá estar e com quem, de onde veio, o que estará a fazer, como vive, o que vive.

Imagino que por detrás daquela janela está uma cozinha onde uma mulher deita água salgada para a panela enquanto está a fazer o jantar, mexendo com a colher de pau de forma mecanizada, sem olhar para a noite reluzente que se faz sentir no exterior. Na do prédio ao lado, cuja luz é mais suave e rosada, deve haver com certeza uma criança a dormir o seu soninho descansado, rodeada pelo seu edredão colorido, de barriga aconchegada, alheia à fome, à guerra e a essas coisas dos grandes (ou não será dos muito pequenos?...). Apenas os desenhos animados que viu lhe ocupam os sonhos, e mal sabe ela que existe água salgada, porque embora já tenha visto o mar mais do que uma vez, nunca o provou.

Cortinas ondulam no primeiro andar de uma vivenda, vultos sobressaem, ocorre ali decerto uma grande jantarada, daquelas entre amigos, cheias de risadas e piadas feitas sobre os tempos em que eram todos uns rebeldes, uns malucos, ou então alguém se levantou da mesa sem pedir licença e foi chorar para o quarto, prestes a pegar numa caneta e a despejar com raiva o ácido que lhe corrói por dentro, eles vão-se arrepender todos, amanhã são eles que vão levar com isto, pois eu já não estarei cá.

Mas não só de luzes se fazem as noites (e os dias); vão aparecendo muitas janelas escuras, apagadas, de divisões que não se vislumbram, de gente que já dorme como a criança ou que até está acordada no meio do escuro, a escutar o silêncio, a querer recobrar uma força que se perdeu. Ou então já ninguém lá mora, foi para fora, fechou portas e saiu em busca de pertencer a outras janelas que entretanto se abriram.

Também há outras que se vão apagando à medida que as avisto, já são horas de recolher ou foram para a sala ver um filme, uma série, um qualquer programa a roçar o ridículo, e as que ficam denunciam projectos que se estendem até tarde, alguém que não pregou olho e pegou num livro, um casal que até gosta de fazer amor assim porque conseguem olhar melhor nos olhos um do outro enquanto se consomem lascivamente.

Do lado de fora assisto a todas estas histórias de supostas vidas que eu não conheço e provavelmente nunca conhecerei, feitas de conforto e miséria, cansaços e esperanças, retendo que eu poderia ter nascido e construído ali a minha história, aquela poderia ter sido a minha família... Que aquela poderia ter sido a minha janela.

No decorrer deste meu exercício divagante, não passo pela tua, por isso não vejo se está acesa ou apagada. Mas se passasse diria que se estivesse lá, estaria a ver-me naquele momento... Do lado de dentro.