janeiro 10, 2016

Chiclas

A pastilha elástica, consumível de culto em tempos imortalizado num hit musical português, existe desde que os Homens se conhecem e se tratam por tu.

Vestida com invólucros brilhantes e apelativos, de fácil abertura, vende-se em diferentes tamanhos, cores e sabores. Algumas se escondem atrás de chupa-chupas e gelados, como que a quererem tornar-se difíceis de alcançar, e ver a deliciosa missão de se chegar a elas ser cumprida dá-lhes um certo gozo.

Tornou-se moda essa coisa das pastilhas elásticas sem açúcar - há que zelar pela saúde, principalmente a dentária -, no entanto em sua substituição prevalecem os artificiais edulcorantes, que ainda conseguem ser piores. Mesmo assim, isso não tira o interesse que se nutre por elas, essas gominhas que adoram passear em cavidades bucais, que as preenchem e se tornam tão flexíveis que dá para soprar e fazer balões daqueles que rebentam na cara, à laia de bomba inofensiva (ou até dentro da boca, conforme a apetência). Basta saber usar a língua.

Enquanto se vai mascando não se vai pensando em nada, reduz-se o stress do dia-a-dia e refresca-se o hálito. Vai-se mascando por vício, vai-se mascando para evitar privações de outros vícios. Vai-se mascando até elas endurecerem e se tornarem desagradáveis ao paladar, que entretanto se alegrava de tão adocicado… Chega portanto a hora de as cuspir e deitar fora, de as trocar por novas, remetendo-as numa questão de minutos à sua efemeridade, quer seja num falsamente digno caixote do lixo, quer seja na valeta de uma rua.

Ninguém disse que as pastilhas elásticas não tinham o direito a existir. Mas há que convir que tendo o estômago cheio, mais cedo ou mais tarde elas acabam por criar uma certa sensação de fome. Por outro lado, se estiver vazio, não são elas que a vão matar. E se há coisa que a fome não gosta, é de ser enganada.

janeiro 09, 2016

Do Lado De Dentro

Às vezes de noite, quando me torno uma mera passageira de um carro, autocarro ou comboio, gosto de olhar para a janela e, sem perturbar ninguém, entrar nas janelas que vou encontrando, cujas luzes acesas pontilham casas e prédios e estabelecimentos, apenas imaginando quem ali poderá estar e com quem, de onde veio, o que estará a fazer, como vive, o que vive.

Imagino que por detrás daquela janela está uma cozinha onde uma mulher deita água salgada para a panela enquanto está a fazer o jantar, mexendo com a colher de pau de forma mecanizada, sem olhar para a noite reluzente que se faz sentir no exterior. Na do prédio ao lado, cuja luz é mais suave e rosada, deve haver com certeza uma criança a dormir o seu soninho descansado, rodeada pelo seu edredão colorido, de barriga aconchegada, alheia à fome, à guerra e a essas coisas dos grandes (ou não será dos muito pequenos?...). Apenas os desenhos animados que viu lhe ocupam os sonhos, e mal sabe ela que existe água salgada, porque embora já tenha visto o mar mais do que uma vez, nunca o provou.

Cortinas ondulam no primeiro andar de uma vivenda, vultos sobressaem, ocorre ali decerto uma grande jantarada, daquelas entre amigos, cheias de risadas e piadas feitas sobre os tempos em que eram todos uns rebeldes, uns malucos, ou então alguém se levantou da mesa sem pedir licença e foi chorar para o quarto, prestes a pegar numa caneta e a despejar com raiva o ácido que lhe corrói por dentro, eles vão-se arrepender todos, amanhã são eles que vão levar com isto, pois eu já não estarei cá.

Mas não só de luzes se fazem as noites (e os dias); vão aparecendo muitas janelas escuras, apagadas, de divisões que não se vislumbram, de gente que já dorme como a criança ou que até está acordada no meio do escuro, a escutar o silêncio, a querer recobrar uma força que se perdeu. Ou então já ninguém lá mora, foi para fora, fechou portas e saiu em busca de pertencer a outras janelas que entretanto se abriram.

Também há outras que se vão apagando à medida que as avisto, já são horas de recolher ou foram para a sala ver um filme, uma série, um qualquer programa a roçar o ridículo, e as que ficam denunciam projectos que se estendem até tarde, alguém que não pregou olho e pegou num livro, um casal que até gosta de fazer amor assim porque conseguem olhar melhor nos olhos um do outro enquanto se consomem lascivamente.

Do lado de fora assisto a todas estas histórias de supostas vidas que eu não conheço e provavelmente nunca conhecerei, feitas de conforto e miséria, cansaços e esperanças, retendo que eu poderia ter nascido e construído ali a minha história, aquela poderia ter sido a minha família... Que aquela poderia ter sido a minha janela.

No decorrer deste meu exercício divagante, não passo pela tua, por isso não vejo se está acesa ou apagada. Mas se passasse diria que se estivesse lá, estaria a ver-me naquele momento... Do lado de dentro.