abril 29, 2013

Adoração

Adoro-te
Adoro adorar-te
Adoro que me adores
Adoro que adores adorar-me
E no meio de tanta adoração...
Adoramo-nos um ao outro!
E eu adoro isso
E sei que adoras também...

abril 28, 2013

Tu Mereces

Tu mereces o vento suave que te acaricia a face. Tu mereces a candura da vela numa noite escura. Tu mereces a espuma das ondas, cada sulco que as gotas da chuva deixam na terra seca, a ternura que as pétalas das rosas depositam nos teus olhos. Tu mereces o cheiro a sal, a bronze e o cheiro da madeira que se ergue para o alto. Tu mereces cada maçã colhida na infância das manhãs, a calma primaveril que toma conta das tardes, a aura prateada da lua. A frescura cálida do sol, e mereces cada ponto e partícula que estão mesmo aqui no firmamento. Tu mereces a fervura do sangue, do suor, das lágrimas derramadas em forma de virtude. E tu mereces a força da palavra, do número, do símbolo. Tantas coisas, quantas aquelas que te justificam, te sustentam, te contêm na sua ínfima composição. Mantém-te parte da parte e do todo que são uno. Tu mereces.

abril 27, 2013

A Viagem

Eis-me chegada ao meu destino. Munida de natural excitação, curiosidade e bastante interesse, inicio a minha visita guiada. És tu que abres as hostes. Em jeito de introdução ao percurso, permites-me fazer primeiro um breve reconhecimento da tua essência, só para ter uma ideia daquilo que vou poder encontrar. E parece-me bem - à partida, acho que vou gostar de te explorar, de te descobrir e de me divertir com isso.

Caminho pela tua história enquanto te oiço atentamente. Falas numa língua que eu entendo na perfeição, como se tivesse sido criada de propósito para mim. Mesmo assim, coloco-te algumas questões, tu respondes e eu anoto tudo no meu bloco de folhas até então vazias, prontas a serem preenchidas de ti. Continuo a ouvir-te; aquilo que foste, aquilo que agora és, aquilo que supostamente serás. Os factos encadeiam-se com os argumentos, as ideias rematam os sonhos, as vontades aliam-se aos princípios. E eu fico maravilhada com toda essa conexão que me mostras e que é tão semelhante à minha... À minha história, sobretudo. Sinto que aprendi muitíssimo, e não me fico por aí, como é óbvio. Sei que há muito mais...

Primeira paragem para uma breve degustação do teu sorriso, da tua boa disposição e boa conversa, preparada à base de trivialidades, com uma pitada de inteligência e desenvoltura intelectual. Deixo-me seduzir pelos aromas que me proporcionas... E para aperitivo, não estão nada maus...

Percorro de seguida as montanhas das tuas tantas outras virtudes. De vez em quando lá vou vislumbrando um ou outro rochedo, vegetação assim como que selvagem, agreste, rompendo o solo desbragadamente, sem ordem... Mas a paisagem no seu todo é graciosa e resplandecente. Contemplo-te. Acabo por encontrar uma linda cascata, e nela corre toda a simplicidade do teu existir. Apetece-me banhar-me nela para sempre... Outros lugares desconhecidos me esperam, porém. Um deles é o imponente palácio, cujo estilo arquitectónico remonta aos teus projectos futuros, ornamentados com esperanças e ambições... Com o meu olhar de turista curiosa, prescruto cada divisão atentamente, e vou apontando mais umas notas no meu bloco... Como por exemplo, que ali viveram anteriormente algumas rainhas. Umas ocuparam o trono por pouco tempo, outras um pouco mais, consoante a duração do reinado. Imaginei como seria bom viver ali... Quem me dera!

E esta viagem não termina sem antes entrar num magnífico templo, frequentado por tanta gente crente, mas na qual não se pode acreditar... Eu fujo um pouco disso, pois trago fé comigo. Acredita. Curvo-me com respeito e observo serenamente uma outra dimensão que me é ali apresentada... A dimensão do teu toque suave, do arrepio intenso que nasce dele sem avisar, do aconchego que experimento nos teus lábios, na tua língua, nos teus braços... Não me cobraste devoção à entrada, só que eu me sinto no dever de a prestar, neste templo construído nas linhas do teu corpo. De espírito transcendido, alcanço o teu altar, onde prostras um sagrado coração... E que belo que é! Medito. A fé que eu trazia em mim renova-se e fortalece-se perante tamanha grandeza. E crio logo ali a minha doutrina.

Infelizmente chegou a hora de partir. Amei, absolutamente, esta visita guiada. E tanto, mas tanto, que estou a pensar seriamente em fixar residência no tal palácio, e fundar uma nova dinastia. E voltar ao templo as vezes que eu quiser, para professar uma religião há muito negada.

Será que me fazes um desconto especial?

abril 23, 2013

Bagagem

Vou de viagem em breve. E por isso fiz uma lista das coisas que vou levar, para não me esquecer de nada. Primeiro que tudo, vou levar uma bússola daquelas modernas, e irei para onde ela me apontar. Vou levar paz e amor espelhados em tinta acrílica. Vou levar sensualidade nocturna fechada num frasco, daquelas bem cheirosas. Vou levar fogo solto no cabelo qual fénix, leveza nos pés qual Ícaro, sede de maresia e fome de verde. Vou levar “riffs” de guitarra delirantes nos ouvidos, calor terno nos braços, curiosidade nos olhos e amabilidade nos lábios. Vou levar um dragão ao ombro e a minha estrela mágica de estimação ao peito. Vou levar padrões de cornucópias, de flores esvoaçantes e outros que tais a preto e branco. Vou levar a delicadeza e malícia de cetim e renda. Vou levar uma noite mal-dormida... E ponteiros demasiado vagarosos no pulso, contrastando com pulsações demasiado velozes... Vou levar alguma ansiedade e nervosismo, mas nada que o momento não exija... Vou levar a serenidade e a racionalidade de sempre, de mãos dadas com a emoção e o sentimento. Vou levar a verdade e a consequência, languidez e vivacidade, o oito e o oitenta que me compõem. Vou levar a preguiça, a luxúria, a gula e deixar para trás as quatro restantes companheiras que faltam... São dispensáveis...
Bom, penso que está tudo. Ah! Entretanto lembrei-me: para me entreter durante o percurso, vou levar um “puzzle” que está por montar, e que ainda não montei porque creio que falta ali uma peça. Parto com a esperança de conseguir encontrá-la numa loja de “souvenirs”.

abril 22, 2013

Promete-me

Promete-me que não esperarás por mim, mas que irás alcançar-me. Eu não sou tão intangível como pensas. Promete-me que te irás congratular por eu ser real, com todas as minhas fissuras, falhas e estilhaços. Promete-me que me vais ajudar a consertar-me, sem te magoares neles. Promete-me então que vais ter cuidado. Longe de mim pretender que fiques ferido. Por isso te peço: promete-me. Promete-me que não terás medo de me perder. Já me achaste, certo? Tenho a noção de que foi sem quereres... E que isso não se torne desculpa para não me quereres. Promete-me que me quererás, agora, amanhã e depois. Eu vou querer muito isso. Eu vou querer-te. Prometo-me.

Promete-me que me irás ajudar também a recuperar o sabor das estrelas, do ar matinal que ainda ninguém respirou, do entardecer lá ao longe no horizonte e ao mesmo tempo tão perto de nós. Promete-me que te manterás perto, mas oxalá não entardeças e te tornes escuro e deserto como as ruas nas quais ninguém tem vontade de vaguear. Promete-me que vamos vaguear um no outro... E em aromas, gargalhadas e lençóis. Promete-me que vais fazer com que os raios de sol e a brisa quente que emana da terra valham a pena. Promete-me rodopios sob luzes de holofotes, embriaguez de sons vibrantes que nos levam ao colo até ao paraíso, o torpor agradável que toma conta dos nossos músculos depois de vivermos tudo isso de forma condensada somente num instante. Promete-me que vais continuar a justificar as minhas crises de vómitos prosaicos, os meus ataques de devoção sincera, as viagens que faço por entre nuvens de maionese...

Não quero que me prometas o que não possas cumprir. Espero por isso não estar a pedir demais. Mas promete-me que farás tudo isto. E eu te reembolsarei com a respectiva devolução.

Eu te prometo.

abril 21, 2013

Gosto De Ti

Gosto de ti. Desculpa. Sei que estou a cometer uma grande ousadia ao fazê-lo. E essa ousadia seria maior se metesse um "muito" ali pelo meio. Gosto muito de ti. Desculpa porque não te pedi permissão. Nem sequer te avisei com antecedência. Agora já não dá para remediar. Mesmo que retirasse o "muito", de pouco ou nada serviria. Porque gosto de ti. E pronto. Ponto final. Sem reticências nem vírgulas. Os pontos de interrogação também não fazem cá falta. Só se for os de exclamação. Gosto de ti? Isso nem se pergunta! Claro que gosto de ti! Pois gosto. Mas de maneira a não provocar grande celeuma, prometo ser bastante racional acerca deste assunto. Vou tentar não sentir e limitar-me apenas a pensar. Em ti. Vou tentar abstrair-me da tua pessoa, e concentrar-me noutra coisa diferente. Por exemplo... Tu. Vou tentar então não gostar ainda mais, porque aí corro o sério risco de pagar o meu atrevimento com a própria vida, pois vou ter que deixar que entres nela e a tomes de assalto. Não é que eu na verdade me importe... Ora, pensando bem, se eu gosto de ti, é porque de alguma forma tu já a fizeste refém. Mesmo que eu me contenha a gostar ainda mais... Desculpa se o fizer. Continuo a ter uma atitude audaz porque a autorização não me foi dada por ti. Gosto de ti, mesmo assim. Sem ponto final. Porque a seguir não há parágrafos. O discurso se mantém, tão directo como eu. 

Desculpa a sinceridade e a frontalidade, mas... Eu menti todo este tempo. 

Eu afinal não gosto de ti. Gosto é de... Gostar de ti.

abril 19, 2013

Musa

"Tens quarto de poeta" - disse-lhe ela.
Ele guardava ali todos os livros, qual biblioteca improvisada. Talvez não houvesse mais espaço noutras divisões. Mas não eram escritos por ele, nem nada que se parecesse. Talvez o aroma a papel desfolhado e a letras a fizesse assumir que ele tivesse um quarto de poeta.
Havia ali também um piano. De facto não deveria haver mais espaço. Ou então o quarto era grande. Ou então era tudo uma questão de praticalidade - acordava, agarrava a inspiração que acordava com ele, sentava-se e tocava. Só não escrevia, realmente. O sol entrava de mansinho pela janela, iluminando as teclas constantemente percorridas, ora inexperientemente, qual aluno principiante, ora freneticamente, como se fosse ele o magno conhecedor de todas as sinfonias e melodias mais perfeitas que alguma vez foram criadas. Só não era pianista.
Era poeta, assumia ela mais uma vez. E isto porque talvez ele lhe recitava versos em forma de abraços, de beijos, de carícias, poesia declamada com a voz da cumplicidade, do desejo, da sintonia, com a voz da felicidade, arrisco-me eu a dizer. E ele arriscava ao piano, mesmo não sabendo sequer uma pauta específica, ou não querendo saber de todo. Só porque aquela que o ouvia continha todas as notas e variações que ele precisava, tudo tão bem encadeado que ele não teria nenhuma dificuldade em interpretar. Aquela música era única, imaculada, intemporal.

Ele não era pianista, nem poeta. Mas tinha o quarto como tal, segundo ela. Ela, que desconhecia afinal a sua condição de musa.

abril 17, 2013

Fugimos

Faz as malas! Fugimos hoje. Para onde, ainda não sei. Mas fugimos, e isso é certo. Não te demores. Deixa para lá as coisinhas fúteis que costumas usar. Dás-me vontade de dizer que ainda és pior que as mulheres. Deixa o perfume em cima da mesa, porque o que eu quero mesmo é o cheiro da tua pele nua, e a esse nem a fragrância mais cara do mundo consegue igualar. Não te importes com a roupa, porque não vais precisar muito dela. Leva a do corpo e uma ou outra camisola, que eu vou adorar vestir quando estiver a levantar-me da cama. Qual cama? Ainda não sei qual. Mas pode ser uma duna, um pedaço de asfalto discreto de olhares, ou se fizeres muita questão, o colchão velho de uma pensão daquelas bem baratas e rascas, porque nem penses que se vai gastar muito dinheiro em luxos. Não preciso de luxos porque já te tenho a ti. Despacha-te a fazer as malas. Vamos de carro, de comboio, de autocarro, de metro, mas por favor, vamos. O relógio já não aguenta de tanta ansiedade e está prestes a rebentar. Bom, se formos a ver eu também nem vou precisar dele, e tu muito menos. Deixa para lá o relógio. Não percas tempo. Ganha-o. E comigo. Por isso é que fugimos. Vamos deixar o tempo que os outros vivem e criar um só nosso, e consumi-lo até que os nossos corpos e almas e corações e tudo o que mais houver apodreçam na doçura e loucura e aventura que ele trará. Vamos. Pensando melhor, deixa as malas. É que a única bagagem que precisas está em mim. E a minha, em ti. Fugimos hoje?

abril 15, 2013

Caderno

Na minha estante, entre livros já lidos e relidos e uma ou outra enciclopédia que ajuda a decorar os espaços deixados entre eles, guardo um caderno, de papel com tom amarelecido a sugerir séculos de existência, e no qual escrevo mensagens. Aquelas mensagens especiais que vou recebendo por telemóvel, de amigos, amigas e não só, como forma de me lembrar deles. O caderno tem uma capa dura, de cor bege, tal como se fosse um livro. E apesar de não ter título, acaba por ser um livro, que de vez em quando vou lendo e relendo, como os outros. Conhecem aqueles tipos de obras que uma pessoa lê, chega ao capítulo final e fica com vontade de ler de novo, mesmo que já conheça a história de cor e salteado? É mais ou menos isso. A diferença é que este livro ainda não conheceu um capítulo final. Isto porque há sempre mais uma mensagem para colocar. Ponho o nome do remetente, copio o texto tal e qual como me foi enviado, registo a data e inclusive a hora a que o recebi. E aí permanece conservado para a posteridade, em nome daquela máxima muito bonita que diz "recordar é viver".

E nessa posteridade posso encontrar de tudo: provas de amizade, provas de amor, provas de amizade que deixou de o ser, provas que desaguaram em desamor. Coisas que eram do momento e outras que se poderiam tornar eternas, ou ainda o são. Mas essas são raras. E através da leitura de todas essas provas, assisto à mutação daquilo que não é palpável, perceptível ao tacto, mas que um dia o coração, a alma ou o que lhe quiserem chamar conseguiu captar. E daí eu ter agarrado numa caneta e, de telemóvel em punho, ter feito um esforço para que tudo isso se tornasse palpável aos meus olhos e à minha compreensão. Acho que o esforço me foi recompensado, porque ainda hoje, ao abrir o caderno, consigo tocar nessas mensagens e sentir o que está dentro delas, ou estava.

Falta-me só transcrever as tuas, que já me enviaste há imenso tempo e que ainda guardo no telemóvel. Aquela escrita em quatro línguas, a da transferência efectuada no banco dos afectos, a tua inspirada confissão de desinspiração para escrever mensagens, a tua cómica paixão declarada por estados de espírito "zombie"... Coisas que só tu e eu entendíamos. E que me levaram a pensar: "Estas merecem ir para o caderno". Não foram logo na altura porque apeteceu-me tê-las à mão, para ir relendo e gravando na minha memória afectiva. Não me dá muito jeito andar com o caderno atrás...

Embora esses curtos textos já não sejam aquilo que foram, eu vou escrevê-los no caderno à mesma. E vou tocar muito neles. E sentir o que está dentro deles. Ou estava. Quem sabe até se não poderá voltar a estar...

abril 14, 2013

O Barco

Agarrei num pequeno pedaço de papel escrevinhado, à partida inútil. E na minha sapiência infantil, fiz dele um barquinho, o mais perfeito e bonito que consegui. Fiquei a olhar para ele. Palavras e palavras rabiscadas anteriormente conferiam-lhe um aspecto interessante, muito mais apelativo do que se eu o tivesse feito usando um papel em branco. Palavras essas que se cruzavam nas dobras e misturavam-se, sendo agora impossível lê-las. No entanto sei que elas estavam lá. E o seu significado também.

Pus o barquinho na água, pronto a navegar, ele e as palavras todas. Mas o barquinho cedeu à superfície e amoleceu. Desfez-se e afundou-se. Nem as palavras nele escritas lhe valeram.

Fiquei triste. O pedaço de papel não era tão inútil assim.

Concluí que, por mais palavras, e frases e afirmações que existam, de nada servirão se não houver superfície estável que as receba, que as segure e ao mesmo tempo que as deixe seguir o seu curso. Não era minha intenção fazer com que o barquinho se afundasse. Será que foi o peso das palavras? Mas elas, cheias de tanta vontade própria em seguir o seu curso - tal como eu as conheço - não deveriam querer tal coisa.

Para a próxima faço um barquinho de papel com uma folha em branco, maior e tudo. Pode ser que dessa vez ele siga feliz, contente e livre até ao seu porto.

abril 11, 2013

Nove Dígitos

Toca o despertador do telemóvel. Acordo e apercebo-me que já devia ter tocado há 15 minutos atrás. Acabei de "queimar" um quarto de hora, como manda a tradição. Levanto-me, olho através da janela e assisto a um tímido nascer do sol que nem me lembrava que existia. Será que hoje vai chover outra vez?

Vou ao WC, depois à cozinha. Preparo o leite e as torradas do costume. Entretanto lanço um olhar momentaneamente interessado aos folhetos publicitários que ontem atafulharam a minha caixa de correio. Coisas muito giras, mas que não combinam com o magro recheio da minha carteira. Coisas muito deliciosas, mas que não combinam com o desejo de me manter igualmente magra, pois tenho a certeza que o longínquo Verão promete.

Acabo de comer, acabo de me arranjar. E segue-se a minha pequena sessão de "jogging" matinal; saio de casa a correr, porque mais uma vez o autocarro saiu do terminal antes da hora. Ou então sou eu que estou mesmo atrasada. E a culpa é daqueles malditos 15 minutos. Com sorte lá consigo apanhar o transporte. Esbaforida, sento-me e encosto a cabeça ao vidro, fechando os olhos. Dirijo-me à estação do metro, mais um cabecear, depois cumpro o habitual percurso a pé. Percorro-o, mas no fundo estou noutro lugar. Mesmo assim sei que ainda não choveu.

Apanho o último autocarro e entro no meu local de trabalho. "Bom dia" a todos, visto o uniforme e inicio a preparação dos produtos que vou vender ao balcão. Chegada a hora, coloco-me atrás do dito. Atendo o primeiro cliente do dia. Vem outro, e depois outro e outro. E a todos ofereço o meu melhor sorriso mecânico, um contacto visual directo que faz parte do processo e linguagem formatada para os conseguir convencer a voltar, tudo isto com boa educação - natural, diga-se de passagem. Alguns correspondem, outros nem por isso. Quero é que eles se lixem.

Eis que chega a minha pausa para almoço. Também eu vou poder disfrutar de uma refeição. Devoro-a em três tempos, tal é a fome. Volto para o balcão, mais um menu, mais uma bebida, mais uma sobremesa, mais um cliente parvo que reclama e deve ser porque o dia não lhe está a correr bem. Estou quase a sair dali, felizmente. Saio, dispo o uniforme e lá vou eu a correr de novo para apanhar o autocarro. Isto é conspiração, só pode. Ainda por cima começou a chover. Bem que me apetecia ir para casa, mas devo ir ao ginásio. E o mesmo ritual que cumpri de manhã repete-se, só que desta vez o uniforme é outro. E os únicos clientes aos quais devo atender são os músculos, que me agradecem a simpatia e a gentileza de os ter posto a trabalhar.

Treino, banho, autocarro. Finalmente, estou em casa. Janto a sopa da praxe. O cansaço vai aparecendo de mansinho. E eu não me dou por vencida. Porque ainda me falta fazer algo.

Nove dígitos. Bastam nove dígitos para mergulhar numa espécie de doce amnésia há muito ansiada. A tua voz. O teu timbre maduro, alegrado com aquele teu sotaque bem-disposto. As tuas piadas. As peripécias do teu dia de trabalho. A tua ternura. A fantasia com que enfeitas as descrições acaloradas do que ainda está para vir entre nós dois. Não me apetece dormir, apesar do cansaço. Apetece-me ouvir tudo o que tens para me dizer, mesmo que seja insignificante.

De súbito me esqueço daqueles 15 minutos. Do cliente parvo. Da chuva. Das provas de atletismo improvisado que uso para cumprir com horários e rotinas. Mas não me esqueço do Verão que promete. Aquele que me vai levar até ti. E que no fundo, já não está assim tão longínquo.

abril 08, 2013

Online

- Estás muito contente... Que se passa?
- Estou contente porque estou a falar contigo, porque estou de folga e estou a falar contigo, porque estou a pintar e estou a falar contigo, porque estou a comer Corn Flakes e estou a falar contigo...
Ah... E porque estou a falar contigo.

abril 03, 2013

Idílio

Saudades. Ânsia. Desejo. Ternura. Tu e eu frente a frente no cais. O sol a bater-nos na pele. Perfume na tua. O meu vestido na noite. O "Blue Velvet" da Lana misturado com luar. O amanhecer. O asfalto.

Tu. Eu. Nós. Simplesmente. Mesmo que não se explique.

abril 01, 2013

Não-Pendente

De vez em quando, lá vou vendo os teus olhos.
Olhos que classifiquei "de mel".
Tu assim o disseste, na verdade.
Tinhas olhos de mel. Olhos doces.
Olhos doentes.
Eu li-os. E vi que havia gente. Mas estavas sozinho.
Olhos dementes...
Olhos que afinal, nada procuravam.
E eu que lhes queria fazer companhia. De uma vez por todas.
Olhos por muito tempo ausentes.
De um olhar que afinal se revelou não-pendente.
Nem de mim. De mais alguém?
Fiquei por saber.

Que encontres então
Quem consiga gostar mais desses olhos cor de mel
Do que eu.
E que os contemple
Mais do que eu poderia contemplar.
No fundo, que tenha a sorte de os conhecer.
Porque essa, infelizmente,
Eu não tive.

E ainda assim
Lá vou vendo os teus olhos
De vez em quando.