abril 11, 2013

Nove Dígitos

Toca o despertador do telemóvel. Acordo e apercebo-me que já devia ter tocado há 15 minutos atrás. Acabei de "queimar" um quarto de hora, como manda a tradição. Levanto-me, olho através da janela e assisto a um tímido nascer do sol que nem me lembrava que existia. Será que hoje vai chover outra vez?

Vou ao WC, depois à cozinha. Preparo o leite e as torradas do costume. Entretanto lanço um olhar momentaneamente interessado aos folhetos publicitários que ontem atafulharam a minha caixa de correio. Coisas muito giras, mas que não combinam com o magro recheio da minha carteira. Coisas muito deliciosas, mas que não combinam com o desejo de me manter igualmente magra, pois tenho a certeza que o longínquo Verão promete.

Acabo de comer, acabo de me arranjar. E segue-se a minha pequena sessão de "jogging" matinal; saio de casa a correr, porque mais uma vez o autocarro saiu do terminal antes da hora. Ou então sou eu que estou mesmo atrasada. E a culpa é daqueles malditos 15 minutos. Com sorte lá consigo apanhar o transporte. Esbaforida, sento-me e encosto a cabeça ao vidro, fechando os olhos. Dirijo-me à estação do metro, mais um cabecear, depois cumpro o habitual percurso a pé. Percorro-o, mas no fundo estou noutro lugar. Mesmo assim sei que ainda não choveu.

Apanho o último autocarro e entro no meu local de trabalho. "Bom dia" a todos, visto o uniforme e inicio a preparação dos produtos que vou vender ao balcão. Chegada a hora, coloco-me atrás do dito. Atendo o primeiro cliente do dia. Vem outro, e depois outro e outro. E a todos ofereço o meu melhor sorriso mecânico, um contacto visual directo que faz parte do processo e linguagem formatada para os conseguir convencer a voltar, tudo isto com boa educação - natural, diga-se de passagem. Alguns correspondem, outros nem por isso. Quero é que eles se lixem.

Eis que chega a minha pausa para almoço. Também eu vou poder disfrutar de uma refeição. Devoro-a em três tempos, tal é a fome. Volto para o balcão, mais um menu, mais uma bebida, mais uma sobremesa, mais um cliente parvo que reclama e deve ser porque o dia não lhe está a correr bem. Estou quase a sair dali, felizmente. Saio, dispo o uniforme e lá vou eu a correr de novo para apanhar o autocarro. Isto é conspiração, só pode. Ainda por cima começou a chover. Bem que me apetecia ir para casa, mas devo ir ao ginásio. E o mesmo ritual que cumpri de manhã repete-se, só que desta vez o uniforme é outro. E os únicos clientes aos quais devo atender são os músculos, que me agradecem a simpatia e a gentileza de os ter posto a trabalhar.

Treino, banho, autocarro. Finalmente, estou em casa. Janto a sopa da praxe. O cansaço vai aparecendo de mansinho. E eu não me dou por vencida. Porque ainda me falta fazer algo.

Nove dígitos. Bastam nove dígitos para mergulhar numa espécie de doce amnésia há muito ansiada. A tua voz. O teu timbre maduro, alegrado com aquele teu sotaque bem-disposto. As tuas piadas. As peripécias do teu dia de trabalho. A tua ternura. A fantasia com que enfeitas as descrições acaloradas do que ainda está para vir entre nós dois. Não me apetece dormir, apesar do cansaço. Apetece-me ouvir tudo o que tens para me dizer, mesmo que seja insignificante.

De súbito me esqueço daqueles 15 minutos. Do cliente parvo. Da chuva. Das provas de atletismo improvisado que uso para cumprir com horários e rotinas. Mas não me esqueço do Verão que promete. Aquele que me vai levar até ti. E que no fundo, já não está assim tão longínquo.

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