maio 23, 2013

Meias

Doem-me os pés de estar tanto tempo de pé. Descalço-me lentamente. Observo os meus dedos cansados, a planta do pé enfiada numa meia elástica, grossa, que tenho obrigatoriamente de usar. São as chamadas meias de descanso, que na verdade não proporcionam descanso nenhum. Apertam os meus pés e as pernas até à zona do joelho, não deixam a pele respirar e causam uma sensação de calor um tanto ou quanto difícil de suportar... O que vale é que são meias sem ponta, e portanto deixam os dedos a descoberto. Os meus dedos magros e cansados.

Nem sempre me mantenho de pé. Também caminho, e até mesmo aí devo usar as tais meias. Não gosto muito de as usar, mas gosto de caminhar. Dizem que faz bem à saúde, melhora a qualidade de vida, etc. Também oiço dizer que o caminho é para a frente, e que mesmo que não seja para a frente, quando se caminha chega-se sempre a qualquer lado.

Doem-me os pés de tanto caminhar. Posso parar para descansar, mas as meias não me vão servir de nada, naturalmente. Posso tirá-las, mas duvido que chegue a algum lado. Curiosamente, e para mal dos meus trilhos, estradas e corredores que tenho para percorrer, o que não falta por aí são meias do género. Que nos apertam, nos cansam e nos impedem de seguir. Em frente ou para os lados... Tanto faz.

maio 21, 2013

Tiquetaque

Conto os dias. Ainda faltam alguns. Conto as horas, e ainda faltam bastantes. Não me dou porém ao trabalho de contar também os minutos e os segundos, porque aí a matemática complica-se e eu nunca fui muito boa a essa disciplina na escola. E para complicados já bastam os dias que faltam, e as horas. Só que não posso passar por cima deles; ainda que eu quisesse destruir todos os relógios, de nada me valeria. Os dias cá estariam na mesma, à minha espera, tal como eu espero que eles passem, que eles se ultrapassem, que eles se atropelem, honestamente falando...

Diz-se que o tempo voa. Tenho as minhas dúvidas acerca disso. Na minha opinião, ele deve estar com algum problema nas asas, ou então a culpa é da baixa altitude. Só isso consegue explicar o facto de a vida que à partida me pertence não estar já aqui e agora ao meu alcance. Invisto, deposito e o banco do tempo demora imenso tempo a disponibilizar-me o crédito. E a paciência, a tolerância e a condescendência são um saldo que se esgota até se tornar negativo.

Continuo a contar os dias e as horas, e lá no fundo sei que as contas vão bater certas. A soma do pensar com o sentir, a subtracção da ansiedade e da expectativa, a multiplicação das alegrias e a divisão das tristezas. E os ponteiros de todos os relógios vão continuar a andar - isso também é certo. Só que dessa vez, ao invés de os querer destruir, vou querer preservá-los e desejar que as asas do tempo nunca saiam do chão.

Tu vais valer todas as operações, equações e resoluções. E os dias. E as horas. E já agora, os minutos e os segundos que outrora vi-me forçada a ignorar. Porque nunca fui muito boa a Matemática. Mas hei-de respirar de alívio... Vou tirar positiva, de certeza.

maio 20, 2013

A Lista

Como rapariga organizada que sou, tenho um pouco a mania das listas. Listas de compras, listas de tarefas, listas telefónicas. Listas por tudo e por nada. Julgo que são uma boa forma de ordenar o pensamento, e de não me esquecer daquilo que devo comprar ou fazer. Mas por norma, como rapariga desorganizada que sou, deixo as coisas das listas por fazer para o dia seguinte. A esse fenómeno dá-se o nome de procrastinação, ou seja, é uma palavra estranha que resume um bocado aquele procedimento de deixarmos para amanhã aquilo que podemos fazer hoje. Claro que depois entra-se em stress e a vida fica uma confusão. E o pensamento, coitado, desordena-se sem que queiramos.

Listas por tudo e por nada, disse eu acima. Por isso é que ontem apeteceu-me fazer uma lista, e diferente de todas as outras: uma lista com 10 nomes. Até poderiam ser 13, só que sempre ouvi dizer que esse número dá azar. Portanto, fiquei-me pelos dez. Não eram nomes de novos contactos que fiz, nem sequer nomes que usaria para baptizar os meus filhos. Eram apenas 10 nomes de exemplares de raça marciana que, como rapariga ocupada que sou, tive oportunidade de testar em laboratório. Ordenei então o meu pensamento no sentido de não me esquecer de nenhum, para memória futura. Recordei-me que cada exemplar tinha a sua natureza, a sua particularidade, e cada um forneceu as respectivas consequências disso nos resultados do respectivo teste. Foi efectuado o mesmo para todos e para cada um deles. Não houve nenhum que tivesse passado. Todos os resultados foram negativos.

Assim sendo, aquela lista não me interessava muito. Foram 10 portas que se fecharam, e às quais eu bati tantas vezes... Foram 10 plantas que fiz questão de regar e que mesmo assim apodreceram... Foram 10 moedas que se revelaram falsas e inúteis às minhas mãos... Afinal, a lista não era só de nomes.

Já que falamos em nomes, o teu não estava lá escrito, felizmente. Porque eu depois rasguei a lista e atirei-a para o caixote do lixo. E o teu nome não estava lá escrito porque não te considero como mais uma cobaia. Não te vejo com perfil para tal, muito menos para te misturares com as outras.

Aliás, em relação a ti resolvi redigir uma outra lista, e que talvez seja mais produtiva... Do género: 

1 - Desordenar docemente o meu pensamento focando-o na tua pessoa;
2 - Entrar de mansinho nas portas que queiras abrir para mim;
3 - Cuidar das tuas folhas, flores e frutos com dedicação;
4 - Valorizar o teu ouro interior;
5 - Reler as mensagens que trocámos;
6 - Colocar-te no meu campo de visão, ou pelo menos uma foto tua;
7 - Manter-te longe do laboratório;
8 - Preservar-te na tua particularidade;
9 - Rejubilar-me com o teu contacto;
10 - Não deitar esta lista para o lixo.

Não vai haver cá procrastinaqualquercoisa. Que seja então a primeira lista a ser cumprida à risca... Como rapariga apaixonada que sou.

maio 18, 2013

Janela

Nós existimos para o mundo, mas sobretudo existimos um para o outro, como se a realidade que ousamos viver lá fora fosse uma obrigação, contrastando com o prazer que sentimos em viver a nossa. De vez em quando fazemos uma pausa - o mais pequena possível - na nossa existência particular, e espreitamos o que se passa lá fora, através da janela que ambos criámos.

Tu sugeriste: "Vamos ver como está o mundo lá fora?", ao que eu respondi que sim. Abrimos então a nossa janela e espreitamos. Constatamos que tudo permanece igual, enquanto que, no lado de dentro, tudo vai evoluindo na ordem correcta; nós estamos justamente onde deveríamos estar, quando deveríamos estar e como deveríamos estar. Completos, íntegros, simplesmente nós.

Ao mesmo tempo, o tal mundo paralelo, chato, cinzento, mesquinho, ao qual nos recusamos a pertencer, apodrece, definha, sem nunca conhecer a noção do quão diferente e belo poderia ser se estivesse como o lado de cá da janela. Mas lá no fundo, ainda bem que não conhece... Pelo menos acabaremos os nossos dias orgulhosos de termos mantido a nossa realidade justamente como deveria ser: só nossa.

maio 17, 2013

Algo

Acredito que tu e eu temos algo para viver. Não sei especificar se esse algo é longo e muito intenso, ou curto e pouco intenso, contudo mesmo que seja curto e muito intenso, lá terá a sua importância. Não sei especificar como ou quando terá lugar... Talvez seja só enquanto eu souber absorver a forma sensual como aprecias o teu cigarro. Ou a expressão meiga do teu olhar castanho, cinzento e de todas as cores que trazes contigo. Ou o sulco vincado pela linha da tua anca. Ou as tuas cicatrizes, das quais tanto maldizes, mas que eu vou adorar ter em conta quando esse algo acontecer. Especialmente as das mãos, mãos sedentas de cura feita com outra pele que não a tua. Tudo isto, mesmo que mantenhas o arco com a flecha em riste, flamejando fogo centáurico, e eu aqui me escudando com a simplicidade de uma espiga de trigo. E tudo isto, mesmo que insistas em cantarolar a mesma canção da mesma banda sonora dos mesmos dias de sempre, e isso te faça parecer um idiota. Só que isso também não me diz nada. Tu dizes-me tudo. Por isso não és idiota nenhum.

E sei que terá lugar enquanto tu souberes arrancar de mim o pulsar de um novo fôlego para os meus dias de sempre. E risos, muitos risos, e o ardor de liberdades renovadas que se tornarão um tanto ou quanto diferentes... Continuo sem saber especificar o quando desse algo, ou como, ou inclusive o porquê. Mas acho que é por aí.

Posto isto, concluo que ambos temos algo para viver. Juntos, portanto.

maio 15, 2013

Verso Breve

Ainda aqui estás
E lá estiveste
E sempre estarás
Foi o que disseste

Também estarei
Não é gratidão
Foi o que pensei
No meu coração.

maio 11, 2013

Cicatriz

Quando eu era pequena, tinha uma amiga que vivia na mesma rua que eu e com a qual gostava muito de brincar ao ar livre. Sendo eu uma criança um tanto ou quanto solitária, ela era uma das poucas amigas que possuía. Num certo dia de Verão, ela veio chamar-me a casa. O meu pai andava a pintar as paredes, e a enorme lata de tinta que ele usava tinha uma tampa cujo rebordo era bastante saliente, permitindo que a lata pudesse ser aberta sem grande dificuldade. E estava virado para cima, tapando a lata colocada no chão. Quando ouvi a voz da minha amiga a chamar por mim, corri para junto da porta, ansiando por mais uma tarde de brincadeira...

Passei junto à lata e eis senão quando... zás!, o rebordo da tampa me faz um golpe profundo na perna esquerda! E não foi um daqueles cortes superficiais... Chegou mesmo a rasgar-me um pedaço da pele, que ficou inclusive dobrado para dentro!... Assustada e com dores, eu só via sangue a escorrer... De súbito, como seria de esperar, vieram os meus pais e o meu irmão socorrer-me - eles em pânico, este um pouco mais calmo... Não me lembro de alguma vez ter sangrado tanto. Com sorte, não fui parar ao hospital, contudo também não fui brincar para a rua naquele dia... A minha amiga, que também deve ter ficado assustada quando se apercebeu da situação, regressou a casa. Entretanto o sangue lá estancou, foi feito o devido curativo, por fim acalmei... Fiquei com a perna envolta em ligadura durante alguns dias, mas isso não me impediu de voltar a brincar, e principalmente com a minha amiga. No dia seguinte lá estava eu com ela, no pátio da vivenda onde eu morava, como se nada tivesse acontecido.

Do incidente resultou uma cicatriz bastante visível, e não lá muito bonita... E já se sabe que as cicatrizes marcam a nossa pele para toda a vida. Os anos foram passando e cresci com ela, aprendendo a aceitá-la como uma parte de mim. A minha amiga também cresceu e fomos nos afastando... Ambas substituímos as brincadeiras da nossa meninice pelos estudos e outros interesses mais adultos. Aos poucos, deixámos de ter contacto uma com a outra, mesmo sendo vizinhas próximas. A minha mãe costumava comentar algo do género "ficaste com essa cicatriz por causa dela e agora não te liga nenhuma!". Mas não foi propriamente por causa dela. Obviamente que a rapariga não teve culpa nenhuma do que se passou. Culpa tive eu, cuja sede de companhia e amizade e desejo de brincadeira (tão natural nas crianças) me traiu.

Este episódio podia resumir a história da minha vida, tão curta e ao mesmo tempo tão rica em cicatrizes, mais ou menos parecidas com aquela que ostento na minha perna esquerda desde miúda. Cicatrizes que outrora foram feridas causadas por ânsias, vontades e desejos despoletados e sentidos por aqueles e aquelas que também chamaram por mim, e aos quais eu cedi. De qualquer forma, segui e sigo optimista. Ainda hoje olho para a cicatriz e me recordo dos momentos de diversão que partilhei com a tal amiga de infância. Para além disso, jã não me parece tão feia como dantes. Aliás - e isto é de facto curioso - , o formato que ela assumiu faz-me lembrar um sorriso...

maio 07, 2013

Café Duplo

Duas doses de pó mágico, uma chávena grande, água bem quente – eis a receita. Confesso que não sou grande apreciadora da mesma, só que por vezes há que a confeccionar. A maioria dos comuns mortais consome-a todos os dias (ou quase todos), pelo menos uma vez ou até mais, e consta que também acrescentam açúcar ou adoçante, como é da praxe. Eu não. Consumo esporadicamente e não acrescento nada a não ser um pouco de natas, às vezes, e uma pitada de canela em pó. Fica mais interessante, à laia de bebida “gourmet”.

Sorvo-a devagar, tendo cuidado para não queimar a língua. A nuvem fofa de natas e canela vai-se desfazendo aos poucos no líquido. Entretanto lembrei-me que a maioria dos comuns mortais prefere uma chávena pequena em detrimento da grande. Pois eu gosto mais desta última, uma dupla dose; no meu caso, sempre funciona melhor do que apenas uma. É duplamente reconfortante e estimulante.

Reconforto-me e estimulo-me desta maneira quando o meu corpo pede uma carga extra de energia para enfrentar mais um dia de trabalho, manter-me mais alerta e atenuar insónias propositadas. Ou então isto é tudo uma desculpa esfarrapada para saborear natas disfarçadamente, sem estar a aturar reclamações da balança, ou até mesmo para mostrar aos comuns mortais que também faço parte do rebanho. Só não saco é do cigarro.

Na verdade, até nem poderá ser nada disto. Sorvo este café duplo muito provavelmente como desculpa para pensar um pouco mais em ti enquanto não começa mais uma sessão de tortura laboral. A pausa para o café é quase como um momento fora do tempo, em que nos abstraímos de tudo e entramos numa espécie de introspecção. Nesse momento, somos só nós e a chávena.

Eu, a chávena e tu. O café não te substitui de forma alguma, contudo também é doce, quente, revigorante, aconchegante, terapêutico. E ainda por cima, como é duplo, fornece todas essas propriedades a dobrar, para além de se demorar mais tempo a bebê-lo, devido ao tamanho da chávena... O que é óptimo, porque consequentemente, consigo incluir-te na minha introspecção de modo mais prolongado.

Havemos de tomar um café juntos, um dia destes. Curto, longo, simples, duplo, triplo, não interessa... Desde que possamos gozar de um momento introspectivo em simultâneo. E se não houver natas nem canela, ou até mesmo o básico açúcar, acredita que nem sequer me vou importar.

maio 06, 2013

A Ponte

Eu tenho um mundo pequeno, tão pequenino, tão meu. Tu tens um mundo pequeno, tão pequenino, tão teu. E entre esses dois mundos, tão pequeninos e tão nossos, existe uma ponte, igualmente nossa. Muito nossa, e ainda mais pequenina, que ambos nos atrevemos a construir - tudo em prol da evolução desses mesmos mundos. Isto porque essa ponte nos permite partilhar o que de melhor há neles. Todos os dias lá nos encontramos, a meio da dita ponte... Eu trago o melhor que há no meu mundo para te mostrar, e tu trazes o melhor do teu para me mostrares... E ambos ficamos encantados com tudo o que esses nossos mundos pequeninos têm para oferecer um ao outro, e isso os engrandece e os enriquece... E lá está, os faz evoluir.

Naquele dia, como de costume, agarrei mais uma vez num pedaço do meu mundo e fui até ao teu encontro, a meio da ponte. Não estavas lá - devias ter-te atrasado, provavelmente a escolher o teu pedaço para trazeres. Mas eu esperei por ti, pacientemente. E nunca mais aparecias... Esperei mais um pouco, e esse pouco transformou-se em muito, e nada. Não apareceste. De súbito, fiquei com a impressão de que a ponte tinha aumentado de tamanho, como se ganhasse quilómetros e quilómetros, e eles nos estivessem a separar. Por mais que eu esforçasse a minha visão, não te conseguia ver lá ao fundo. Por mais que eu corresse, não conseguia chegar até ti.

Tudo o que eu queria era viver um pouco no teu mundo... E deixar que tu vivesses no meu, e o mudasses; que te tornasses tu próprio na sua evolução. E eu, habitando no teu, faria a minha parte também.

Tenho para mim que, na génese de todas as coisas, os nossos pequenos mundos eram um só, e que por razões que não se encontram ao alcançe do nosso raciocínio, se separaram, dando origem a dois. Com esta troca que sugiro, julgo com toda a certeza que voltariam a fundir-se. E aí já não seria necessário haver uma ponte que os ligasse.

A propósito, ainda lá estou, bem no meio, aguardando a tua chegada. Com todo aquele pedaço do meu mundo, pronto a tornar-se teu.

maio 05, 2013

Facto

Existe alguém.

E ainda bem.

Quem?

Só a nós diz respeito...

E a mais ninguém.

maio 01, 2013

Arquétipo

O teu cabelo moreno
O teu olhar delicado
O teu semblante sereno
O teu peito desenhado

Os teus lábios modestos
O teu sorriso rasgado
Os teus decididos gestos
O teu passo demorado

A tua voz maviosa
O teu discurso estudado
A tua mente curiosa
O teu instinto apurado

O teu indiferente querer
O teu íntimo baralhado
A tua negação de ser
O meu arquétipo amado

O meu destino ferido
Pelo arquétipo errado
O teu pedestal destruído
O teu final declarado.