Quando eu era pequena, tinha uma amiga que vivia na mesma rua que eu e com a qual gostava muito de brincar ao ar livre. Sendo eu uma criança um tanto ou quanto solitária, ela era uma das poucas amigas que possuía. Num certo dia de Verão, ela veio chamar-me a casa. O meu pai andava a pintar as paredes, e a enorme lata de tinta que ele usava tinha uma tampa cujo rebordo era bastante saliente, permitindo que a lata pudesse ser aberta sem grande dificuldade. E estava virado para cima, tapando a lata colocada no chão. Quando ouvi a voz da minha amiga a chamar por mim, corri para junto da porta, ansiando por mais uma tarde de brincadeira...
Passei junto à lata e eis senão quando... zás!, o rebordo da tampa me faz um golpe profundo na perna esquerda! E não foi um daqueles cortes superficiais... Chegou mesmo a rasgar-me um pedaço da pele, que ficou inclusive dobrado para dentro!... Assustada e com dores, eu só via sangue a escorrer... De súbito, como seria de esperar, vieram os meus pais e o meu irmão socorrer-me - eles em pânico, este um pouco mais calmo... Não me lembro de alguma vez ter sangrado tanto. Com sorte, não fui parar ao hospital, contudo também não fui brincar para a rua naquele dia... A minha amiga, que também deve ter ficado assustada quando se apercebeu da situação, regressou a casa. Entretanto o sangue lá estancou, foi feito o devido curativo, por fim acalmei... Fiquei com a perna envolta em ligadura durante alguns dias, mas isso não me impediu de voltar a brincar, e principalmente com a minha amiga. No dia seguinte lá estava eu com ela, no pátio da vivenda onde eu morava, como se nada tivesse acontecido.
Do incidente resultou uma cicatriz bastante visível, e não lá muito bonita... E já se sabe que as cicatrizes marcam a nossa pele para toda a vida. Os anos foram passando e cresci com ela, aprendendo a aceitá-la como uma parte de mim. A minha amiga também cresceu e fomos nos afastando... Ambas substituímos as brincadeiras da nossa meninice pelos estudos e outros interesses mais adultos. Aos poucos, deixámos de ter contacto uma com a outra, mesmo sendo vizinhas próximas. A minha mãe costumava comentar algo do género "ficaste com essa cicatriz por causa dela e agora não te liga nenhuma!". Mas não foi propriamente por causa dela. Obviamente que a rapariga não teve culpa nenhuma do que se passou. Culpa tive eu, cuja sede de companhia e amizade e desejo de brincadeira (tão natural nas crianças) me traiu.
Este episódio podia resumir a história da minha vida, tão curta e ao mesmo tempo tão rica em cicatrizes, mais ou menos parecidas com aquela que ostento na minha perna esquerda desde miúda. Cicatrizes que outrora foram feridas causadas por ânsias, vontades e desejos despoletados e sentidos por aqueles e aquelas que também chamaram por mim, e aos quais eu cedi. De qualquer forma, segui e sigo optimista. Ainda hoje olho para a cicatriz e me recordo dos momentos de diversão que partilhei com a tal amiga de infância. Para além disso, jã não me parece tão feia como dantes. Aliás - e isto é de facto curioso - , o formato que ela assumiu faz-me lembrar um sorriso...
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