abril 19, 2013

Musa

"Tens quarto de poeta" - disse-lhe ela.
Ele guardava ali todos os livros, qual biblioteca improvisada. Talvez não houvesse mais espaço noutras divisões. Mas não eram escritos por ele, nem nada que se parecesse. Talvez o aroma a papel desfolhado e a letras a fizesse assumir que ele tivesse um quarto de poeta.
Havia ali também um piano. De facto não deveria haver mais espaço. Ou então o quarto era grande. Ou então era tudo uma questão de praticalidade - acordava, agarrava a inspiração que acordava com ele, sentava-se e tocava. Só não escrevia, realmente. O sol entrava de mansinho pela janela, iluminando as teclas constantemente percorridas, ora inexperientemente, qual aluno principiante, ora freneticamente, como se fosse ele o magno conhecedor de todas as sinfonias e melodias mais perfeitas que alguma vez foram criadas. Só não era pianista.
Era poeta, assumia ela mais uma vez. E isto porque talvez ele lhe recitava versos em forma de abraços, de beijos, de carícias, poesia declamada com a voz da cumplicidade, do desejo, da sintonia, com a voz da felicidade, arrisco-me eu a dizer. E ele arriscava ao piano, mesmo não sabendo sequer uma pauta específica, ou não querendo saber de todo. Só porque aquela que o ouvia continha todas as notas e variações que ele precisava, tudo tão bem encadeado que ele não teria nenhuma dificuldade em interpretar. Aquela música era única, imaculada, intemporal.

Ele não era pianista, nem poeta. Mas tinha o quarto como tal, segundo ela. Ela, que desconhecia afinal a sua condição de musa.

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