outubro 23, 2013

Piano

Sento-me perante ti. Percorro-te lentamente com o meu olhar. Antigo, possante, de sábia calma, fresco, um tanto ou quanto frágil, frenesi ocultado. Reúnes tudo. Notas agudas e graves repartem-se pelas teclas brancas, pontuadas pelos meios tons que as teclas pretas revelam pelo meio. Tudo ao dispor para uma sinfonia completa. Vai ser desafiante; ninguém me ensinou a tocar. Ainda assim, me familiarizo com elas. Como se na verdade tivesse tido uma preparação prévia, nem que tivesse sido em sonhos; consta que é assim que os génios da música compõem. Não pretendo ser um génio. Apenas quero pôr em prática aquilo que posso saber. Ou até sei.

Estico os meus dedos delgados. Toco-te. Toco-te ao de leve, devagar. O primeiro som que me sai é grave, gutural, pouco trabalhado, no fundo. Não me assusto, nem desisto. São só as primeiras teclas. Uma a uma, vou-te explorando, sem pressas, como se não te quisesse corromper. Quero-te aprender, apenas... Dá-me tempo. As primeiras notas são uma espécie de choro... De drama... São tristes. Ora, ainda estou no princípio. Ainda me falta percorrer as outras, e são tantas. Já para não falar nos meios tons, que me despertam curiosidade. Continuo a tocar-te... Experimento-os. Forço naturalmente o equilíbrio que deve haver entre as notas.

Pausadamente, lá vou passando para as mais agudas... São de facto mais alegres, mais leves... Os meus dedos pronunciam-se: já te conheço tão bem. E só comecei a tocar-te há pouco. Confesso que eles não estavam propriamente treinados, mas isso era aquilo que eu pensava que sabia... Lá no fundo, eu sabia. Que podia extrair de ti uma tímida junção de Dós e Sóis, de Lás e Sis. Atabalhoada, eu sei... O típico início, afinal, de todas as coisas perfeitas. Quantas e quantas pautas terão sido rasgadas neste mundo antes de o seu fruto brotar para o nosso deleite auditivo?

Repito: não quero ser um génio da música. Não quero mostrar nada para plateia alguma. Não me quero sequer convencer que possa existir outras teclas pretas e brancas. O que eu quero é continuar a tocar-te. A ouvir os sons que produzes. A equilibrar com mestria os teus agudos e graves. Acredito que todas as peças que estão por ser criadas serão magistrais, sem haver mais ninguém na orquestra. E tudo isso com todo aquele prazer que obtive da primeira vez que me sentei perante ti e te percorri com o olhar.

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